Liderança por COMPETÊNCIA e não por GÊNERO

04.12.2017 - Michel Pozzebon / Jornal Exclusivo

Cristine Grings Nogueira
Há dois anos e meio, Cristine Camila Grings Nogueira, 37 anos, comanda uma das mais tradicionais fabricantes de calçados do País. Ela é presidente da Piccadilly Company (Igrejinha/RS), empresa que no ano passado faturou R$ 350 milhões e produziu mais de 7 milhões de pares de calçados femininos de conforto. Formada em Marketing pela Universidade Feevale, Cristine assumiu a presidência da empresa no lugar de seu tio, Paulo, que passou a fazer parte do conselho de administração do negócio fundado pelo avô, Almiro, em 1955. “Assumir a presidência da empresa foi uma oportunidade desafiadora e, ao mesmo tempo, muito gratificante”, conta Cristine.

Ser mulher à frente de um cargo de liderança em uma empresa tradicional nunca a intimidou. “Muito pelo contrário. Sempre recebi muitas oportunidades de crescimento e desenvolvimento. A empresa tem uma cultura e um olhar muito mais pela competência profissional do que se é homem ou mulher”, explica.

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Como você encara o desafio de presidir uma empresa tradicional, até pouco tempo comandada por homens e fundada pelo seu avô? Você chegou a sofrer algum tipo de preconceito por ser mulher em um cargo de liderança? Enxerguei como uma oportunidade desafiadora e, ao mesmo tempo, muito gratificante. Dentro da empresa, ao longo do tempo, nunca se teve um olhar ligado a gênero e sim a competência profissional. Apesar de sermos uma fabricante de calçados femininos, é muito grande a presença masculina dentro da companhia. Me relacionei muito com a segunda geração da família na empresa, especialmente com meu pai e dois tios. Um desses meus tios tem três filhas mulheres. Antes de eu ser presidente, era ele quem comandava a empresa e era a quem eu me reportava. Nunca sofri nenhum tipo de preconceito. Muito pelo contrário. Sempre recebi muitas oportunidades de crescimento e desenvolvimento. É um olhar muito mais pela competência profissional do que se é homem ou mulher.

De que forma se desenvolveu o processo de governança dentro da empresa, com a transição da segunda para a terceira geração da família Grings no comando da Piccadilly? Durante dois anos, construímos um pacto, que é um processo desenvolvido pelas empresas de governança. A consultoria que nos apoiou estruturou esse processo com a gente. Esse pacto envolve três círculos: a família, a empresa e a sociedade. Dentro deste pacto estabelecemos combinações que alinham as expectativas de todos com relação a uma série de temas e com isso buscamos minimizar possíveis conflitos. Isso tudo gerou um amadurecimento muito grande para nós como família empresária. Assinamos esse pacto no dia em que a empresa completou 60 anos, ou seja, há dois anos e meio. E, quando estávamos num processo de finalização desse pacto, se entendeu também que era o momento de se fazer a sucessão. Foi quando o meu tio passou a presidência para mim. Como vice-presidente, assumiu a minha prima Ana Carolina. Já a minha prima Ana Paula ficou responsável pela diretoria administrativa financeira. Além das minhas duas primas, ainda temos outros três diretores – um deles ainda da segunda geração e outros dois da terceira geração. Passamos a contar também com um outro diretor não familiar e criamos o conselho de administração com o objetivo de profissionalizar ainda mais a empresa. Hoje, o conselho é um fórum muito importante para nós, nos ajudando com uma visão estratégica, imparcial, de experiência em outros negócios e que tem sido um ponto de apoio muito importante para a nossa gestão.

Em recente entrevista você comentou que a empresa “segue familiar, mas cada vez mais profissional.” Como equilibrar essa equação? Houve a necessidade de quebrar paradigmas, ao permitir a aproximação de profissionais não relacionados à família? Temos utilizado uma frase que acreditamos muito: o dono age como profissional e o profissional age como dono. É o mundo ideal conseguir que as pessoas que estão inseridas no negócio, não sendo necessariamente da família, se sintam como se fossem. Porque toda vez que tu te sentes desta forma, com certeza trabalha de uma maneira mais envolvida e comprometida. Ao mesmo tempo, não é porque é da família que tenha de trabalhar no negócio. Até porque não existe mais mercado para isso. Então, necessariamente, precisamos ter familiares que estejam devidamente profissionalizados. Acreditamos muito nesta soma. A gente tem trabalhado para que a família possa estar cada vez mais preparada para estar à frente da gestão e, por outro lado, aqueles que não são da família, possam se sentir como fossem e atuem como donos do negócio.

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Você sempre desejou estar inserida na companhia? Quando começou a trabalhar na empresa e quais funções desempenhou até chegar à presidência? Por um bom tempo eu não queria atuar na empresa. Tinha aquele sentimento de que iam dizer: estou lá só porque sou filha do dono. Acabei vivendo outras experiências profissionais. A mais importante delas: fui sócia de uma agência de publicidade e propaganda em Novo Hamburgo/RS. Eu era supernova e isso me deu muita experiência em lidar com pessoas e, obviamente, experiência técnica também. Mas, chegou num determinado momento em que eu me via lá dentro e pensando estrategicamente na Piccadilly. Então, o meu tio, que era o presidente da empresa e responsável pelas áreas Comercial e de Marketing, me convidou para assumir a gerência de Marketing. Foi o momento em que eu me senti mais madura, tinha adquirido outras experiências profissionais, ou seja, estava mais preparada para poder contribuir. Foi quando em 2004 iniciei na Piccadilly. Depois da gerência, assumi a diretoria de Marketing. E, alguns anos antes de ser presidente da companhia, vivi a experiência de ser vice-presidente da empresa.

E a relação com suas primas? A nossa união é a nossa maior fortaleza. Numa empresa familiar, em especial quando a gente entra na terceira geração, que é sempre um paradigma ainda maior, temos a união como uma grande fortaleza. A gente, como trio, sem deixar de mencionar os demais, nós três mulheres temos uma grande sinergia e uma grande complementariedade, que também é muito importante. Uma soma o que a outra tem de potencialidade, de fragilidade. Então, juntas somos mais fortes. Falando de terceira geração, a gente escuta muito de que a terceira geração quebra os negócios, mas a gente diz que quer quebrar paradigmas. Então, estamos trabalhando para isso.

O que você julga ser imprescindível para um líder nos dias de hoje? Um aspecto fundamental é saber lidar com pessoas. Conseguir saber de que forma a gente compromete e motiva ela. Acredito que, de alguma forma, isso se soma. Também ser muito aberto a ouvir. As opiniões diferentes acabam sendo complementares. E, somando elas, a gente pode ter um resultado muito melhor. Uma outra questão é poder ter uma visão de futuro, enxergando os movimentos que estão acontecendo no mercado, se antecipando a estas mudanças. Enxergo que este é um desafio grande para uma empresa de muitos anos de vida. Então, acreditamos que precisamos ser uma companhia de 62 anos, mas, cada vez mais jovem, porque o mercado nos exige essa reciclagem. Isso é fundamental para a sustentabilidade dos nossos negócios.

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Hoje a Piccadilly concentra-se no público feminino, mas chegou a ter marcas infantis. Por que a companhia optou por encerrar os projetos para outros públicos? A gente fez uma avaliação muito profunda neste sentido e entendeu que a marca Piccadilly é tão valiosa, tão forte e que tínhamos espaço para extrair mais dela do que vínhamos extraindo até então. E, por isso, a decisão de se dedicar àquilo que a gente é melhor e nos aprimorar ainda mais no que já fazíamos muito bem. Buscando ser cada vez mais uma marca referência para as mulheres: a mulher moderna, a mulher que quer se sentir bonita, confortável, e, sem deixar de lado a rotina multitarefa delas.

De que forma a Piccadilly tem enfrentado o atual momento do mercado? O nosso entendimento é de que a gente não deve se paralisar na crise, mas que ela seja uma oportunidade para repensarmos o negócio. Então, o que buscamos fazer são inúmeros temas de casa. Enxergamos que em momentos de bonança, em que as coisas estão fluindo de uma forma fácil, acabamos não tendo foco para executarmos algumas medidas que precisam ser tomadas. Crise é uma grande oportunidade. Um aspecto importante para nós é a inovação. Procuramos pensar novas formas para o negócio, sem deixar de lado a nossa essência. Não é porque vamos evoluir que evoluiremos para algo que não é a gente. Devemos manter a nossa identidade.

Como está a presença da empresa no mercado externo? Por conta do mercado interno encolhido, foi necessário ampliar presença nos últimos meses? Há muitos anos a marca Piccadilly é referência no mercado externo. Por mais de 20 anos temos uma atuação muito forte no mercado externo e, hoje, isso representa um ativo muito valioso não só no Brasil, mas fora do País também.

A Piccadilly está presente em cem países diferentes, em todos os continentes e com marca própria. Definitivamente, em momentos em que existe uma instabilidade como a que vivemos hoje no Brasil, esse é um ativo ainda mais valioso, especialmente por não depender de um mercado específico.

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O projeto internacional foca em franquias ou multimarcas? É a soma das duas coisas. Nosso entendimento é de que as duas são estratégias complementares. Já temos uma presença internacional forte, com 20 lojas em diferentes países, entre eles Estados Unidos, Kuwait, Equador, Nova Zelândia e Guatemala. Interessante destacar que estas lojas foram abertas por parceiros, que são nossos distribuidores nestes mercados. Eles perceberam a força da nossa marca, o potencial que tínhamos no mercado de atuação deles. Estes distribuidores abriram por conta própria estes estabelecimentos e hoje o nosso objetivo é poder maximizar todo esse potencial que existe lá fora. Queremos aumentar nossa presença em lojas multimarcas e monomarcas e, além disso, expandir para territórios em que ainda não comercializamos nossos produtos.

Está nos planos da empresa fazer oferta pública inicial de ações (IPO)? Nosso sentimento é de que ainda não estamos maduros para isso. De toda forma, a gente vem quebrando tantos paradigmas nos últimos anos que o meu entendimento é de que num horizonte de médio prazo é possível de que isso aconteça. Em muito casos, quando se vive o processo de abertura, se constrói ele, se profissionaliza ainda mais o negócio e chega lá no fim e se decide não abrir. Independentemente desta abertura, este movimento contribui para que o negócio fique mais poderoso, saudável e preparado.

O que podemos esperar da Piccadilly para 2018? Algum projeto novo em vista? Começamos em 2017 a implantação do nosso novo posicionamento da marca Piccadilly. Este posicionamento foi construído ao longo de muito estudo, com o objetivo de poder acompanhar a evolução da mulher moderna. O que a gente fez foi buscar inspiração nestas mulheres com quem a Piccadilly tem uma relação tão próxima. Desde que entrei na Piccadilly, me surpreendi com o nível de relação tão intensa que muitas consumidoras têm com a marca, uma relação de lealdade muito positiva. Então, a gente foi se inspirar nesta mulher, claro, na consumidora e na não consumidora. Naquela que é a mulher real do dia de hoje. Buscamos entender com maior profundidade como é essa mulher, os anseios dela, e construímos um propósito de marca ainda mais profundo, mais consistente do que temos hoje. Então, o nosso objetivo é dar ainda mais força, em 2018, para esse novo posicionamento que estará presente no mercado por meio de produto, de comunicação e também nos pontos de venda. Importante também destacar o investimento que fizemos na contratação do nosso primeiro diretor não familiar, que é um diretor comercial. Tínhamos essa função ligada até então a alguém da família. Mas, o que acabou acontecendo com a saída de uma das minhas primas da gestão foi de que a gente não tinha ninguém da família que tivesse o perfil ou que desejasse atuar nesta área. Vimos que era preciso buscar este profissional no mercado. Ele veio com experiências novas e vivências diferentes.

Em relação à sucessão, você enxerga os seus filhos inseridos na empresa no futuro? Quando construímos o pacto e todo aquele processo de governança, estabelecemos as regras de entrada da quarta geração. Hoje, a minha filha mais velha tem 9 anos. Mas já temos filhos de pessoas da terceira geração com 14 anos. Então, já estamos estruturando esse processo com quem deseja trabalhar na empresa e, infelizmente ou felizmente, o mercado é cada vez mais desafiador. Quem deseja atuar no mercado precisa estar mais preparado, seja para executar alguma função executiva, ou para ser algum acionista. É importante que eles estejam preparados para serem os melhores. Entendemos que este processo é importante, que ele ainda é embrionário, mas está em nossa pauta.

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Foto: Diego da Rosa/GES
A PICCADILLY COMPANY

Fundação: 4 de junho de 1955
Sede: Igrejinha/RS
Empregos diretos: 3,5 mil
Faturamento (2016):
R$ 350 milhões
Produção anual (2016): mais de 7 milhões de pares
Volume exportado (2016): 2,5 milhões de pares
Unidades fabris: sete unidades localizadas em Igrejinha/RS (matriz e duas filiais), Rolante/RS (uma filial), Teutônia/RS (duas filiais) e Santo Antônio da Patrulha/RS (uma filial)
Principais mercados internacionais: Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, Colômbia, Portugal, Israel, Kuwait e Peru

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